Paróquia Nossa Senhora Aparecida
Literatura e Espiritualidade
 
18.Nov - Uma homenagem ao Dia da Consciência Negra
Uma homenagem ao Dia da Consciência Negra

 



 


Vozes-mulheres



A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.


A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.


A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.


A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.


A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.


A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade


                                                                                                            Conceiçao Evaristo 




 


O Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, foi instituído no Brasil em 2003 e desde então tem procurado por meio de reflexões trazer à luz uma realidade que, por diversas      razões, se dissimula: as pessoas trazidas à força do continente africano para trabalhar como escravos no Brasil e que ainda se fazem      presentes.  A instituição dessa data no calendário figura como ecos que ressurgem em seus descendentes. Afinal, são parte da história e têm o direito de serem reconhecidos. À sociedade, cabe o dever de conhecer em que bases a sociedade brasileira foi fundada.



Por todos os 5 séculos de história do Brasil, muitas vozes se vão elevando, com o propósito de mostrar caminhos da consciência histórica do papel dos negros e da afirmação no presente. Dentre tantas vozes relevantes, destaco a escritora da Conceição Evaristo, com uma obra especialmente pautada pela busca da identidade da mulher negra.


No poema em tela, “Vozes-mulheres”, publicado no livro Poemas da recordação e outros movimentos, o que se vai construindo pelos versos é uma sequência de gerações, cada uma com sua força expressiva e sonora, no contexto de suas lutas e projeções futuras.


O título do poema evoca dois aspectos importantes: o primeiro é o fato de se propor a mostrar vozes, o segundo é dizer a quem pertence, às mulheres. As estrofes se estruturam como elos de uma corrente, cada parte-estrofe representa uma geração de famílias diversas, porque simbolizam toda a coletividade.


Essa poesia, de Conceição Evaristo, percorre o legado de memórias deixadas pelas mulheres negras, cujas vozes são caladas no fazer literário em geral. No entanto, simultaneamente, ao unir o vocábulo ‘vozes’ ao vocábulo ‘mulheres’, formando um substantivo por meio de um recurso linguístico, o hífen, a palavra transforma-se e ganha um empoderamento do discurso, pois, as vozes e as mulheres têm a mesma conotação: trajetórias femininas mostradas pela ancestralidade; afirmação de existência, a partir de um coletivo


A voz presente na poesia faz a denúncia por intermédio da arte. Uma voz letrada que pode divulgar a outros suas perplexidades. Nessa mesma voz, há denúncias do ontem e do hoje, pois sabe que pouca coisa dos maus tratos e das explorações mudou desde as gerações anteriores, uma vez que os versos estão perplexos de sangue e de fome, por isso as denúncias ainda se fazem necessárias.


Na poesia, o poder do discurso é evidenciado, trabalhado e divulgado, uma repetição sonora extraída dos versos que, ao mesmo tempo em que demonstra um crescimento de alcance da voz, demonstra também a condição social presente.


Ao final, o poema tem um tom profético, ao usar o verbo no futuro “se fará ouvir, pela voz da filha, uma voz que ganha corpo e tem realmente algo a dizer, que a luta continua pelas novas gerações. Permeado por todas as gerações, esse “eco-liberdade”, considera que a condição primeira para se ter de fato liberdade é agregar às vozes do passado, sem esquecer sua ascendência. Nessa perspectiva, viver plenamente como cidadão, é cada um ser senhor de sua história, e que ela não seja mais marcada com sangue, mas que seja construída com dignidade, força e esperança.


Mesmo com a intolerância, o preconceito e o racismo tão presentes em nosso meio, ainda assim é pelo diálogo,  pela empatia e pela compreensão do outro, com sua história e bagagem,  seus desejos e traumas, que podemos avançar como sujeitos ativos e integrados a uma sociedade.


Lembrai: “ ‘Amarás teu próximo como a ti mesmo, fazeis bem; se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado’ (Tiago 2:8-9). Não podemos hospedar no nosso coração qualquer forma de preconceito, seja racial, social, ou qualquer outro.


Jesus nos ensina ao final do evangelho de Mateus 25 que, tudo o que fizermos aos seus irmãos, fazemos a Ele. Devemos amar, respeitar e considerar as pessoas da mesma forma que gostaríamos de ser tratados. Jesus estabeleceu o padrão para os cristãos quando disse ‘todos vocês são irmãos" (Mat 23:8), desta maneira construiremos uma sociedade mais justa e digna.”



Referências


EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos.  5. ed.  Rio de Janeiro: Malê, 2017.


Anu. Lit., Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 96-111, 2015. ISSN e 2175-7917


 


Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/29-critica-de-autores-feminios/201-eco-e-memoria-vozes-mulheres-de-conceicao-evaristo-critica. Acesso em 14/11/2021


Disponível em: https://umprofessorle.com.br/2019/11/20/vozes-mulheres/


 


Ivete Monteiro de Azevedo


Professora de Língua Portuguesa e Revisora de Textos


Doutora em Estudos da Linguagem pela UFF/Niterói/RJ


 


 


 


 


 


 


 


 


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