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Literatura e Espiritualidade
 
30.Ago - A Última Crônica
A Última Crônica


 



A Última Crônica – Fernando Sabino (Fragmento)



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher…
Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma....


A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual...


 Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você”...


O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.


Fernando Sabino


Biografia de Fernando Sabino


Fernando Sabino (1923-2004) foi um escritor, jornalista e editor brasileiro. Recebeu diversos prêmios, entre eles, o Prêmio Jabuti pelo livro "O Grande Mentecapto" e o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Foi condecorado com a Ordem do Rio Branco, no grau de Grã-Cruz, pelo governo brasileiro.


Fernando Tavares Sabino nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, no dia 12 de outubro de 1923. Em 1930, após aprender a ler com a mãe, ingressou no Grupo Escolar Afonso Pena. Fez o curso secundário no Ginásio Mineiro. Ao final do curso conquista a medalha de ouro como o primeiro aluno da turma.


https://mundoeducacao.uol.com.br/literatura/fernando-sabino.htm


 


 Uma pausa para reflexão:


 A Crônica ocorre na Gávea (Rio de Janeiro), onde percorrendo as ruas a caminho de casa, o autor busca fatos irrisórios, pitorescos, enfim, o assunto para a sua "Última Crônica".


Não sabia ainda o que buscava, sabia apenas que a inspiração faltava, quando lançando o último olhar para fora de si presencia fato merecedor para a Sua última...


O casal não se abala pela dificuldade financeira e sem perder a estima comemora de maneira simples o Aniversário da filha. As velas tiradas do bolso e a fatia de bolo trazida pelo garçom transformam-se na trilha sonora de um tímido e discreto entoar de "Parabéns a você".


 São pequenos gestos, simples ações que transformam vidas. Procure pensar na capacidade que gestos mais simples nos tornam felizes. E na lição que cada dia a vida nos apresenta. Buscamos Deus tão longe, quando na verdade se manifesta e nos faz sentir a sua presença no dia a dia!


 Os momentos festivos, comemorativos da vida só ganham o tom de relevância porque se apoiam no vigor, na força do cotidiano. A formatura de um filho, o casamento, uma conquista relevante no campo do trabalho. Festejamos com tanta intensidade porque a vida não é uma festa contínua. Toda simplicidade da vida interior nos remete a espiritualidade serena e densa, às vezes pontuais em nossas vidas.


A simplicidade e intensidade espiritual no poema “Saber Viver” de Cora Coralina


 “Não sei”… se a vida é curta ou longa demais para nós, mas, sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas. ” “Muitas vezes basta ser: o colo que acolhe o braço que envolve a palavra que conforta o silêncio que respeita a alegria que contagia a lágrima que corre o olhar que acaricia o desejo que sacia o amor que promove.” “E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida, é o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto ela durar…”


Um poema precioso baseado em uma singela observação do cotidiano, das miudezas da vida e de uma sabedoria de quem aprecia cada detalhe do caminho. Um simples gesto é muito a quem tem tão pouco e a quem muito tem, às vezes, o pouco, é o bem mais precioso.


 


Professora Walkiria de Souza Rijo


Formação: Universidade do Grande Rio – Letras-Português e suas Literaturas e Pós-Graduação em Língua Portuguesa e Gestão Escolar – Administração, Supervisão, Orientação e Inspeção


 


 


 


 




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